CAPÍTULO
8
Modernidade
OBJETIVOS DO CAPÍTULO:
• Identificar as características gerais do Humanismo.
• Refletir sobre a importânssia da tradição antiga no pensamento humanista.
• Analisar a importânssia do ceticismo na construção do relativismo de Montaigne.
• Identificar as características gerais do Iluminismo.
• Compreender o significado da Enciclopédia no contexto iluminista.
• Explorar as relações entre Iluminismo e colonialismo.
• Analisar o problema do gênero no pensamento iluminista.
Nos últimos anos, políticos, ativistas e militantes de partidos políticos ao redor do glôbo passaram a mobilizar ideias quê defendem a tese de quê, supostamente, as sociedades ocidentais estão passando por um processo de selvageria.
Frequentemente, tais discursos apresentam cunho anti-imigratório, pois associam a crescente presença de imigrantes nas sociedades ocidentais à suposta degradação de práticas e côstúmes tradicionais.
A popularização do termo “ensauvagement” (em tradução livre, “tornar-se selvagem”) no discurso político francês contemporâneo reflete esse movimento contrário à presença de estrangeiros não ocidentais nas sociedades europeias. Esse termo é bastante utilizado por partidos e grupos quê defendem ideias racistas e procuram restringir os direitos de imigrantes, principalmente africanos ou pessoas provenientes de países de maioria árabe.
ATIVIDADES
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. Você considera quê ideias semelhantes àquelas defendidas por grupos e indivíduos quê usam o termo “ensauvagement” estão presentes nas discussões políticas no Brasil? Por quê?
1. Respostas pessoais. Há dados quê demonstram a presença recorrente de comportamentos xenófobos de parcelas da ssossiedade brasileira contra imigrantes.
2. Em sua opinião, a ideia de quê as sociedades ocidentais estão caminhando para um estado de crescente selvageria fundamenta-se em fatos concretos? Debata com côlégas.
2. Resposta pessoal. Espera-se quê os estudantes associem práticas violentas ao crescimento de problemas sociais.
3. Entre o final do século XV e o século XVIII, os contatos entre ameríndios e europêus impactaram o pensamento filosófico, provocando reflekções sobre diferenças culturais. Em sua opinião, de quê modo o contato com culturas diferentes póde contribuir para a reflekção crítica da sua própria cultura?
3. Resposta pessoal. Espera-se quê os estudantes reflitam sobre a importânssia do contato com outras culturas para o desenvolvimento do relativismo cultural, problematizando práticas culturais quê são naturalizadas na vivência cotidiana.
Página cento e quarenta e sete
Um problema social de grande relevância no presente é a xenofobia, ou seja, a hostilidade a estrangeiros. O crescimento dos fluxos migratórios ao redor do planêta vêm sêndo acompanhado por respostas violentas e discriminatórias de indivíduos e movimentos políticos em muitos países. Essas práticas xenófobas foram incorporadas aos debates políticos, resultando em medidas e leis quê ameaçam direitos fundamentais de imigrantes e refugiados.
Um argumento utilizado por muitos indivíduos quê defendem tais práticas é o de quê os movimentos migratórios provocariam uma suposta subversão dos valores tradicionais de uma nação. Nessa lógica, racista e discriminatória, essa subversão resultaria em atitudes selvagens. O termo “ensauvagement” é um exemplo presente nesses discursos xenófobos.
A expressão da xenofobia está presente em muitos países, como é o caso da França. Naquele país, a ideia de quê os imigrantes estariam contribuindo para a selvageria da nação começou a ganhar fôrça no debate político a partir da década de 2010. De modo semelhante, é possível encontrar exemplos do uso político dessa ideia xenófoba em outros países, inclusive no Brasil.
A ideia de selvageria provém da oposição entre “civilizado” e “selvagem” (ou bárbaro), sêndo uma dicotomia presente em muitos contextos históricos. Na história dos países ocidentais, essa oposição ganhou fôrça a partir do século XV, quando teve início o processo de expansão colonial e dominação de outros povos pêlos europêus.
A partir de então, diversos filósofos exploraram, muitas vezes d fórma crítica, a constituição dessa dicotomia, fornecendo ferramentas para evidenciar suas fragilidades conceituais. Neste capítulo, você vai conhecer aspectos dessa discussão com base na identificação de algumas linhas gerais do movimento humanista e do Iluminismo. Dessa forma, poderá refletir sobre os usos políticos dessa dicotomia no presente e a importânssia de problematizar práticas e discursos xenófobos no mundo contemporâneo.
Página cento e quarenta e oito
Transformações na Baixa Idade Média e o Humanismo
A Europa passou por grandes transformações a partir do século XI. Esse contexto foi marcado pela intensificação das trocas comerciais. Nas cidades em expansão, novos grupos sociais, como a burguesia, ganharam importânssia e passaram a buscar formas de conquistar prestígio social. Foi também um momento de fortalecimento do pôdêr real e o início de um lento declínio da autoridade do clero cristão.
Do ponto de vista intelectual, o período foi marcado pelo avanço acelerado na tradução de textos de filósofos gregos, como Aristóteles e Platão. Além díssu, surgiram espaços institucionais de pesquisa e ensino, especialmente as primeiras universidades europeias, como Bolonha e Salerno (na atual Itália), Paris (França), óksfór (atual Reino Unido), entre outras.
Esses espaços foram importantes na organização de debates intelectuais, científicos e filosóficos. Nessas instituições, a retomada do estudo de textos da Antigüidade clássica possibilitou o desenvolvimento de uma cultura intelectual quê foi chamada de Humanismo.
O Humanismo póde sêr definido como um movimento intelectual quê valorizava o estudo da studia humanitatis, um conjunto de saberes considerados centrais para a compreensão da existência humana e para o exercício da sua liberdade. Entre esses saberes estavam gramática, retórica, poesia, história, ética, entre outros.
Segundo os filósofos humanistas, os saberes retomados da Antigüidade clássica permitiriam superar modos de pensar e de ensinar quê se desenvolveram na Europa. A análise das obras clássicas era entendida como uma forma de praticar um modelo ideal de escrita e argumentação, além de mobilizar categorias, conceitos e ideias.
A valorização da tradição antiga representou um momento de renascimento intelectual e cultural, com a retomada do modelo clássico no tempo presente. Por essa razão, o período entre os séculos XIV e XVI é chamado de Renascimento cultural e científico na Europa.
A obra Escola de Atenas, de Rafael Sanzio (1483-1520), foi pintada entre 1510 e 1511, sôbi encomenda do Vaticano. Nela, o artista pintou os maiores estudiosos antigos como se fossem contemporâneos e amigos. Assim, Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), Pitágoras (582- 497 a.C.) e Ptolomeu (100-168) convivem em um só tempo e espaço. Platão e Aristóteles conversam ao centro. Rafael também representou humanistas como se fossem figuras da Antigüidade. Platão foi caracterizado como Leonardo da Vinci (1452-1519). Em primeiro plano, sentado e apoiado no cotovelo, está o filósofo Heráclito (540-470 a.C.), com as feições do escultor e pintor Miquelângelo (1475-1564). O próprio Rafael também está presente na obra, como um estudante, o segundo da direita para a esquerda, embaixo.
Página cento e quarenta e nove
Aspectos gerais do Humanismo
A filosofia humanista foi marcada pela retomada e transformação de diversas correntes filosóficas. Muitos filósofos humanistas, como Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) e Marsílio Ficino (1433-1499), foram influenciados pelo platonismo e pelo neoplatonismo, valorizando temas ligados à imortalidade da alma e à organização cosmológica do Universo. Esses pensadores também refletiram sobre a existência humana e a posição do sêr humano na ordem cósmica.
Outra corrente muito influente no Humanismo foi o aristotelismo, quê tem Pietro Pomponazzi (1462-1525) como um dos principais expoentes. Ele explorou textos de Aristóteles como forma de desenvolver uma interpretação racional de sua filosofia, inclusive se afastando das interpretações canônicas da escolástica.
O ceticismo também foi uma corrente filosófica importante, promovendo o questionamento de saberes consolidados e o uso da razão como forma de conhecer e explorar o mundo.
A combinação dessas correntes resultou no desenvolvimento de uma forma de pensamento quê acreditava sêr possível compreender o mundo d fórma racional e lógica. A filosofia humanista, durante o Renascimento, construiu um olhar antropocêntrico para o mundo, valorizando a liberdade e a agência humanas.
A preocupação em abandonar categorias tradicionais de pensamento estimulou posturas experimentalistas, quê estão na origem da grande revolução científica quê marcou o período. O Humanismo foi marcado por uma postura laicizante, ainda quê não tenha ocorrido uma ruptura completa com a religião cristã.
A renovação intelectual proposta pêlos humanistas também está relacionada com o desenvolvimento da ciência moderna. A valorização da razão e do experimentalismo contribuíram para a superação de modelos científicos medievais.
- laicizante
- : quê torna laico, sem interferência de religiões na lei.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• O quêstionamento dos saberes consolidados foi uma característica importante do Humanismo. De que maneira essa postura póde contribuir atualmente para combater a difusão de fêik news e práticas anticientíficas?
Espera-se quê os estudantes discutam a importânssia do questionamento e da investigação como formas de combater práticas anticientíficas.
Página cento e cinquenta
Montaigne e o ceticismo
Ao recuperar a tradição antiga, os humanistas exploraram formas de pensar e argumentar quê ampliaram os horizontes filosóficos ocidentais. Um filósofo quê exemplifica isso é o francês Michél de Montaigne (1533-1592).
Considerado um dos principais expoentes do Humanismo, estabeleceu um intenso diálogo com a filosofia antiga, criando uma visão singular sobre a existência humana e as transformações de seu tempo, como os contatos entre europêus e as sociedades ameríndias.
Sua principal obra, Ensaios, publicada em 1580, apresenta uma longa reflekção a respeito de sua própria vida, suas ideias e experiências. O humanista enxergava seus ensaios como um exercício em busca da sabedoria, de modo a aprender a viver e, principalmente, a morrer. Essa obra explora aspectos da vida prática, como a importânssia da amizade, quê ele considerava uma dimensão fundamental para alcançar a sabedoria.
A grande influência filosófica de Montaigne foi o ceticismo, especialmente a partir da leitura da tradução de obras de Plutarco (46-120) e Sexto Empírico (c. 160-c. 210). O humanista acreditava sêr necessário colocar em dúvida todos os conhecimentos humanos, pois a principal característica da razão é sua capacidade de duvidar e questionar.
Para Montaigne, esse ceticismo não implica recusa do conhecimento, mas reforça a tese de quê a razão deve continuamente quêstionar as verdades aceitas, movimentando-se com base em juízos provisórios que orientam a existência humana.
Nada conheceremos de nosso sêr, porque tudo o quê participa da natureza humana está sempre nascendo ou morrendo, em condições quê só dão de nós uma aparência mal definida e obscura; e se procurarmos saber o quê somos na realidade, é como se quiséssemos segurar a á gua; quanto mais apertamos o quê é fluido, tanto mais deixamos escapar o quê pegamos. [...]
MONTAIGNE, Michél de. Ensaios. Tradução: Sérgio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 586.
Página cento e cinquenta e um
O problema do “outro”
Uma expressão do ceticismo de Montaigne póde sêr observada na maneira como ele explorou o problema do “outro”. Em seus Ensaios, o humanista analisou temas relacionados a côstúmes e tradições de outras sociedades e povos do passado, como as tradições das socieda des ameríndias.
No século XVI, a conkista e a colonização da América pêlos europêus foram acompanhadas pela intensa circulação de relatos dos modos e côstúmes dos povos ameríndios.
Muitos dêêsses relatos eram marcados por um olhar etnocêntrico. Os côstúmes indígenas eram descritos sôbi a perspectiva européia, apresentando os ameríndios como selvagens desprovidos de saberes e crenças religiosas. As narrativas a respeito das práticas de canibalismo entre os tupinambá foram especialmente mobilizadas na construção dêêsse olhar.
A perspectiva cética de Montaigne ataca esse modo de pensar. Em seu texto “Dos canibais”, quê intégra os Ensaios, o filósofo faz a seguinte afirmação.
[…] não vejo nada de bárbaro ou selvagem no quê dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o quê não se pratíca em sua térra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de sêr das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e côstúmes do país em quê vivemos. […]
MONTAIGNE, Michél de. Ensaios. Tradução: Sérgio Milliet. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 236-237.
Assim, em vez de caracterizar as sociedades ameríndias como selvagens, Montaigne elabora uma postura relativista, defendendo quê as ideias de civilização e selvageria são historicamente constituídas por meio das experiências de cada povo.
Montaigne reconstitui o diálogo de três indígenas levados pêlos franceses para a Europa. Nesse momento, o relativismo é reforçado ao destacar o julgamento negativo quê os indígenas fazem da ssossiedade européia. Para os indígenas, segundo Montaigne, era estranho um monarca criança comandando homens adultos em uma ssossiedade com tanta abundância, porém repleta de pessoas famintas e empobrecidas.
ATIVIDADE
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• Em dupla, discutam como a postura relativista de Montaigne póde contribuir para o respeito à diversidade cultural no mundo contemporâneo.
Resposta pessoal. Espera-se quê os estudantes concluam quê o relativismo quêstiona ideias que naturalizam cértas práticas culturais como mais corretas quê outras. Desse modo, essa postura valoriza a diversidade de práticas culturais e o respeito às culturas diversas.
Página cento e cinquenta e dois
CONEXÕES com...
SOCIOLOGIA
O paradoxo do relativismo cultural
O antropólogo francês Clôde Lévi-Strauss (1908-2009) explorou diversas vezes o problema do etnocentrismo e do relativismo cultural, inclusive dialogando com as ideias de Montaigne. O fragmento a seguir é um exemplo díssu. Leia-o atentamente e responda ao quê se pede.
A atitude mais antiga […] consiste em repudiar, pura e simplesmente, as formas culturais, morais, religiosas, sociais ou estéticas mais afastadas daquelas a quê nos identificamos. ‘Modos selvagens’, ‘isso não se faz entre nós’, ‘deveria sêr proibido’ e outras tantas reações grosseiras traduzem esse arrepio, essa repulsa diante de modos de vida, de crença ou de pensamento quê nos são estrangeiros. […]
[...] Tal atitude de pensamento, em nome da qual os ‘selvagens’ (ou todos aqueles quê se decida considerar como tais) são relegados para fora da humanidade, é justamente a atitude mais marcante e mais distintiva dos próprios selvagens. Sabe-se, com efeito, quê a noção de humanidade englobando, sem distinção de raça ou de civilização, todas as formas da espécie humana surgiu muito recentemente e numa região delimitada. Mesmo onde parece ter atingido o auge de seu desenvolvimento, nada garante – a história recente é próva díssu – quê esteja a salvo de equívocos ou de retrocessos. Para vastas frações da espécie humana, contudo, essa ideia parece nunca ter existido. […]
[...] o paradoxo do relativismo cultural (que encontraremos alhures sôbi outras formas): quanto mais se busca estabelecer discriminações entre as culturas, maior a proximidade em relação àquelas quê se pretende recusar. Negar a humanidade aos seus representantes aparentemente mais ‘selvagens’ ou ‘bárbaros’ significa adotar uma de suas atitudes típicas. Bárbaro é, antes de tudo, o homem quê crê na barbárie.
LÉVI-STRAUSS, Clôde. Antropologia estrutural dois. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naífy, 2013. E-book. Localizável em: subt. O etnocentrismo.
ATIVIDADES
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. De quê modo Clôde Lévi-Strauss descreve as práticas etnocêntricas no fragmento?
1. Elas são descritas como uma divisão entre o eu e o outro, quê é relegado para fora da humanidade e é alvo de discriminações e violências.
2. Explique o paradoxo do relativismo cultural apresentado por Lévi-Strauss.
2. Quando um grupo recusa outro, negando-lhe a humanidade, o primeiro grupo age d fórma bárbara. Assim, todos são bárbaros na medida em quê opéram em alguma instância por meio de processos de discriminação das culturas.
3. De quê modo o ceticismo de Montaigne póde contribuir para enfrentar o paradoxo do relativismo cultural?
3. A postura cética de Montaigne problematiza o procedimento de discriminação das diferentes culturas, propondo uma historicização dessas categorias.
Página cento e cinquenta e três
Do Humanismo ao Iluminismo
As inovações intelectuais formuladas pêlos humanistas foram seguidas por importantes descobertas científicas e avanços tecnológicos entre os séculos XVII e XVIII. Nesse período, formou-se a chamada ciência moderna, baseada na constituição de regras e métodos quê tiveram grande impacto nas práticas científicas.
Esse período também foi marcado pelo avanço do processo de dominação colonial da América por potências europeias, além da intensificação da exploração do tráfico atlântico de escravizados. Com isso, o continente europeu passou por grande dinamismo econômico e militar.
Porém, foi uma época marcada por guerras, conflitos sociais, disputas religiosas e movimentos revolucionários. Todas essas transformações impactaram o pensamento filosófico, estimulando reflekções políticas, éticas e epistemológicas.
Nesse contexto, as teorias contratualistas ganharam fôrça nas discussões políticas europeias. O debate a respeito do conhecimento humano contrapunha correntes empiristas e racionalistas. Muitas discussões filosóficas ocorriam em salões literários, rêuní-ões e academias científicas, com maior liberdade para debater conceitos e teorias do quê nos ambientes universitários. Esses novos espaços privados atraíam um público variado compôzto de nobres, burgueses e religiosos e foram o cenário do surgimento do Iluminismo ao longo do século XVIII.
- epistemológico
- : relativo à teoria do conhecimento.
Os iluministas acreditavam sêr possível utilizar os conhecimentos científicos e filosóficos para analisar criticamente a ssossiedade de seu tempo, propondo reformas sociais, políticas e econômicas quê questionavam as estruturas do Antigo Regime.
O Iluminismo póde sêr entendido como uma forma de síntese das grandes transformações filosóficas quê marcaram o pensamento europeu durante a modernidade, especialmente a crença no papel da razão como ferramenta para compreender e transformar o mundo.
- Antigo Regime
- : conceito utilizado para descrever as sociedades europeias entre os séculos XVII e XIX. Essas sociedades eram marcadas por rígidas hierarquias sociais e grande pôdêr dos soberanos, com o apôio da nobreza e do clero.
Página cento e cinquenta e quatro
O projeto enciclopédico
Um aspecto central do pensamento filosófico europeu entre os séculos XVII e XVIII é seu caráter enciclopédico. Os iluministas acreditavam sêr possível organizar o conhecimento humano d fórma lógica, possibilitando a qualquer indivíduo o estudo do quê foi produzido pelas gerações anteriores. Exemplo díssu é a Ciclopédia, um dicionário universal das artes e ciências, publicada em 1728 na Inglaterra.
O projeto enciclopédico teve grande influência sobre os filósofos iluministas franceses. O grande projeto da Enciclopédia francesa teve início como uma proposta de tradução da Ciclopédia. O projeto ficou sôbi os cuidados do filósofo Denis Diderot (1713-1784), com o auxílio de jã Le Rond d’Alembert (1717-1783). Porém, os dois abandonaram o projeto de tradução, dando início à elaboração de uma nova obra. Diderot e D’Alembert contaram com centenas de colaboradores, escolhidos entre especialistas de diversas áreas, quê podiam elaborar seus verbetes com liberdade, promovendo uma organização sistemática dos saberes científicos e filosóficos.
A obra foi organizada d fórma alfabética, facilitando o trabalho de consulta. O projeto resultou na publicação, entre 1751 e 1772, de 17 volumes de texto e 11 volumes de pranchas com imagens. Esse conjunto tem 74 mil verbetes.
O projeto enciclopédico teve grande influência no pensamento filosófico desde então, simbolizando o ideal racional e a crença de quê a razão humana é capaz de organizar os saberes para interpretar e transformar o mundo.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• Atualmente, as tecnologias de inteligência artificial são apresentadas como uma forma de organização dos conhecimentos humanos, capazes de ampliar a produtividade, a criatividade ou a estruturação de pesquisas científicas. Essas tecnologias seriam, assim, uma forma de combinar o ideal enciclopédico com o avanço técnico-científico do presente. Reflita sobre esse tema e elabore um texto argumentativo analisando criticamente essas tecnologias.
Produção pessoal de acôr-do com a percepção dos estudantes, quê podem se posicionar de diversas maneiras diante dêêsse tema.
Página cento e cinquenta e cinco
PERSPECTIVAS
O texto a seguir é um fragmento do “Discurso preliminar dos editores”, quê consta na Enciclopédia e foi escrito em junho de 1751 pelo filósofo jã Le Rond d’Alembert. Seu objetivo é apresentar ao leitor a maneira como a Enciclopédia foi concebida e organizada por seus editores.
Falta-nos mostrar como procuramos conciliar, neste Dicionário, a ordem enciclopédica com a ordem alfabética. Utilizamos para isso três meios, o sistema figurado quê se encontra no início da obra, a ciência a quê cada verbete se refere e a maneira pela qual o verbete é tratado. Indicou-se, via de regra, após a palavra quê é assunto do verbete, o nome da ciência de quê esse verbete faz parte; e para conhecer o lugar quê deve ter o verbete na Enciclopédia, basta verificar, no sistema figurado, quê posição essa ciência ocupa. Se acontecer de o nome da ciência sêr omitido no verbete, a leitura será suficiente para saber a quê ciência ele se refere; e se, por exemplo, tivéssemos esquecido de avisar quê a palavra Bomba pertence à ár-te militar, e o nome de uma cidade ou de um país à Geografia, contamos com a inteligência de nóssos leitores para esperar quê não se sentissem chocados com essa omissão. Aliás, pela disposição das matérias em cada vêrbete, sobretudo quando for um pouco extenso, não se poderá deixar de ver quê o verbete está ligado a outro, quê depende de uma ciência diferente, êste a um terceiro, e assim por diante. Esforçamo-nos para quê a exatidão e a freqüência das remissões não deixe, quanto a isso, nada a desejar, pois as remissões, neste Dicionário, têm a particularidade de servir sobretudo para indicar a ligação das matérias, enquanto nas outras obras do gênero elas são apenas destinadas a explicar um verbete por um outro. Frequentemente, até omitimos a remissão, pois os termos de; ár-te ou de ciência sobre os quais ela poderia recair encontram-se explicados em seu verbete, quê o leitor irá procurar por si mesmo. Foi sobretudo nos verbetes gerais das ciências quê se procurou explicar o auxílio mútuo quê se prestam. Assim, três coisas formam a ordem enciclopédica: o nome da ciência à qual pertence o verbete; a posição dessa ciência na árvore; a ligação do verbete com outros na mesma ciência ou numa ciência diferente, ligação indicada pelas remissões ou fácil de notar, tendo em vista os termos técnicos explicados segundo sua ordem alfabética. [...]
DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, jã Le Rond. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Organização de Pedro Paulo Pimenta e Maria das Graças de Souza. São Paulo: Editora da Unésp, 2015. v. 1, p. 133-135.
ATIVIDADES
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. Em duplas, releiam o texto e identifiquem as principais ideias.
1. Espera-se quê as duplas identifiquem a sistematização com quê foi produzida a obra.
2. Criem um esquema visual organizando as informações do texto. Ao final, compartilhem o esquema com côlégas.
2. Produção pessoal com base na leitura dos estudantes e na seleção das características centrais do texto.
Página cento e cinquenta e seis
O problema do “outro” no Iluminismo
Entre os séculos XVI e XVIII, o processo de dominação colonial se consolidou, possibilitando a formação de grandes impérios europêus quê exploravam territórios da América e, em menor escala, da Ásia e da África.
A dominação européia foi acompanhada por debates a respeito das definições de sêr humano, das relações entre diferentes culturas, bem como da (i)legitimidade da dominação colonial. Para além da perspectiva relativista e universalizante da cultura formulada por Montaigne, a legitimidade do processo colonial motivava debates travados por religiosos da chamada Escola de Salamanca, como Francisco de Vitória (1483-1546) e Francisco Suárez (1548-1617).
Ao longo do século XVII, outros pensadores discutiram kestões relacionadas à colonização. O inglês Diôn Locke (1632-1704), por exemplo, defendeu a legitimidade da escravidão no contexto colonial, bem como da expropriação das terras indígenas.
A partir do século XVIII, a questão do “outro” americano ganhou novo sentido. Pensadores passaram a conceber obras nas quais estabeleceram diálogos fiksionais com ameríndios com a finalidade de construir críticas ao colonialismo e, sobretudo, ao modo como as sociedades europeias estavam organizadas.
A obra Novas viagens à América do Norte, do francês Louis Armand de Lom d’Arce (1666-1716), o barão de Lahontan, quê contém uma parte com diálogos fictícios entre o autor e um ameríndio, teve grande influência nos filósofos iluministas. Publicada em 1703, tornou-se um sucesso na Europa, apresentando posições anticlericais, além de críticas à organização da ssossiedade francesa, ao regime monárquico e aos valores morais.
Lahontan usou sua experiência como agente da colonização francesa na América, criando um diálogo com um líder indígena huroniano chamado Kondiaronk (c. 1625-1701). Esse tipo de diálogo, no qual o “outro” assume um papel de destaque na construção de críticas sociais, era incomum na Europa naquele momento, mas se popularizou rapidamente, tornando-se um importante instrumento para a construção da filosofia iluminista.
- huroniano
- : referente ao lago Huron, região habitada por nação indígena na atual divisa entre o Canadá e os Estados Unidos.
Página cento e cinquenta e sete
Diderot e a denúncia do colonialismo
Seguindo o modelo popularizado por Lahontan, Denis Diderot escreveu Suplemento à viagem de Bougainville, obra publicada postumamente, em 1796. Com base no relato da expedição de volta ao mundo escrita pelo navegador Louis antoní de Bougainville (1729-1811), Diderot concebeu uma obra com múltiplas vozes em diálogo, inclusive de povos nativos do Taiti, na Polinésia Francesa. Diderot defende uma concepção universal de humanidade, em uma época em quê a legitimação da dominação colonial e do processo de escravização de ameríndios e africanos residia na ideia de cisão entre civilização e barbárie, muitas vezes desumanizando os povos supostamente “não civilizados”. Diderot ataca essa visão, construindo uma narrativa de um ancião taitiano. Em um discurso marcado pela indignação, o nativo denuncía as violências cometidas pêlos europêus, defendendo a ideia de quê taitianos e franceses são sêres quê compartilham uma natureza comum e possuem os mesmos direitos. Com a narrativa, Diderot conclui quê os próprios europêus atuam d fórma selvagem, violentando outros povos em busca de enriquecimento ilícito e desumano.
Leia o fragmento a seguir.
A ilustração From the quêip to Cairo representa uma mentalidade típica do início do século XX: a oposição entre civilização e barbárie, entre o colonizador e o colonizado.
[…] Nós somos livres; e eis quê tu fincaste em nosso solo o título de nossa futura escravidão. Tu não és nem deus, nem demônio: quem és então, para fazer êskrávus? […] Se um taitiano desembarcasse um dia em vossas costas, e se gravasse numa de vossas pedras ou na casca de uma de vossas árvores: ‘Este país é dos habitantes do Taiti’, o quê acharias? Tu és o mais forte! E o quê tem isso? […] Aquele de quêm quêres te apoderar como de um bruto, o taitiano, é teu irmão. Vós sois dois filhos da natureza; que direito tens tu sobre ele que ele não tenha sobre ti? Tu vieste; nós nos atiramos sobre tua pessoa?
Pilhamos o teu navio? Nós te prendemos e te expusemos às flechas de nóssos inimigos? […]
DIDEROT, Denis. Suplemento à viagem de Bougainville ou diálogo entre A e B. In: DIDEROT, Denis. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. E-book. (Os pensadores). Localizável em: II. Os adeuses do ancião.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• O fragmento de Diderot apresenta argumentos válidos para a reflekção sobre situações de violência no mundo contemporâneo? Por quê?
O texto de Diderot apresenta argumentos em defesa da ideia de quê todos os sêres humanos têm direitos igualitários, quê devem sêr respeitados por todos.
Página cento e cinquenta e oito
Iluminismo, história e crítica ao colonialismo
Uma das obras iluministas mais influentes na crítica ao colonialismo é a História filosófica e política dos estabelecimentos e do comércio europeu nas duas Índias, de 1770, escrita pelo francês Guillaume Tômas Raynal (1713-1796), mais conhecido como abade Raynal.
Também conhecida como História das duas Índias, a obra do religioso apresenta uma narrativa sistemática da história da colonização européia na América, desde a chegada dos primeiros conquistadores até os acontecimentos quê marcaram os territórios coloniais no final do século XVIII.
Para realizar tal empreitada, Raynal contou com a colaboração de diversos pensadores iluministas, inclusive Diderot. O religioso tinha uma concepção de história alinhada com as propostas iluministas, pretendendo não apenas narrar os acontecimentos, mas também contribuir para transformar o leitor em cidadão e filósofo.
A história de Raynal tinha um sentido político muito claro, denunciando a opressão promovida pelas potências coloniais. As críticas desenvolvidas pelo religioso tiveram grande repercussão, provocando sua perseguição e exílio da França.
A obra de Raynal teve grande influência entre americanos quê lutavam contra a dominação colonial. O Haiti foi a primeira colônia da América Látína a conseguir sua independência, em 1804, após 12 anos de revolução contra os franceses. A ilustração representa François-Dominique Toussaint L’Ouverture (1743-1803), líder da Revolução Haitiana, lendo um trecho da obra de Raynal.
O livro foi proibido em diversas regiões da Europa, classificado como um texto quê ameaçava a ordem constituída. Porém, isso não impediu a circulação e a popularização do texto.
Como era resultado de um esfôrço coletivo, nem sempre a obra apresenta uma visão política coerente e unificada. Ainda assim, ela explora alguns temas d fórma recorrente, como o direito à rebelião, a crítica às práticas escravistas e as denúncias às violências cometidas por autoridades coloniais contra sociedades ameríndias.
A História das duas Índias póde sêr vista como uma importante síntese de princípios filosóficos do Iluminismo, com críticas ao Antigo Regime e com a defesa da liberdade humana.
Página cento e cinquenta e nove
Iluminismo e gênero
A questão das desigualdades de gênero foi abordada em textos iluministas. Nos espaços de discussão típicos do Iluminismo, diversas filósofas participaram ativamente, denunciando a posição subalterna das mulheres na ssossiedade européia do século XVIII.
A francesa Françoise de Graffigny (1695-1758), conhecida como madame de Graffigny, é autora do romance Cartas de uma peruana, um relato de uma mulher inca fictícia quê é sequestrada pêlos espanhóis durante a conkista do Império Inca no século XVI. Utilizando o recurso de dar voz ao outro para denunciar problemas sociais próprios da ssossiedade européia, a obra discute a violência da colonização e o acesso desigual das mulheres europeias à educação. O texto defende princípios de igualdade entre homens e mulheres.
Defensora dos ideais iluministas de igualdade entre todos os indivíduos, a francesa Olympe de Gouges – pseudônimo de Marie Gouze (1748-1793) – foi uma pensadora e política quê participou ativamente das fases iniciais da Revolução Francesa. Ao contrário de outros pensadores do período, ela entendia quê esses princípios eram válidos tanto para homens quanto para mulheres.
Em 1791, publicou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, um diálogo crítico com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, publicado pêlos revolucionários franceses em 1789. Gouges defendia a extensão dos direitos de cidadania conquistados durante a Revolução Francesa às mulheres, de modo a garantir a participação política igualitária. Defendia também propostas abolicionistas, denunciando a violência da escravidão. Contrária às políticas de repressão do govêrno revolucionário francês, Gouges foi perseguida e condenada à morte em 1793.
Saiba mais
• A ATUALIDADE de Méry Wollstonecraft, pioneira do feminismo. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (7 min). Publicado pelo canal Tevê Boitempo. Disponível em: https://livro.pw/lehdt. Acesso em: 16 ago. 2024.
A pensadora iluminista inglesa Méry Wollstonecraft (1759-1797) defendia os direitos das mulheres e publicou obras importantes sobre a igualdade de gênero, como Reivindicação dos direitos da mulher. Nesse vídeo, a socióloga Maria Lígia Quartim de Moraes (1943-) comenta a atualidade da obra de Wollstonecraft.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• As desigualdades entre homens e mulheres foram superadas no presente? Discuta esse tema com côlégas.
Espera-se quê os estudantes obissérvem quê ainda existem diferenças no mercado de trabalho, quê persistem violências de gênero etc.
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PERSPECTIVAS
Humanistas e filósofos dos séculos XVII e XVIII se debruçaram sobre a questão da tolerância religiosa, abordando a convivência entre praticantes de diferentes religiões, bem como o papel dos governos na regulamentação do direito de expressão religiosa.
A Idade Moderna foi marcada pelo crescimento dos conflitos religiosos na Europa em decorrência das reformas protestantes. A fragmentação do cristianismo em diferentes religiões foi acompanhada por guerras quê contrapunham católicos e praticantes das religiões reformadas, bem como seguidores das diferentes religiões quê se formaram com as reformas.
Filósofos apresentaram diferentes perspectivas em torno da questão da tolerância religiosa, como exemplificadas nos fragmentos a seguir. O primeiro é um trecho da obra de Diôn Locke, Carta sobre a tolerância. O segundo é um trecho do Tratado sobre a tolerância, de Voltaire, pseudônimo de François-Marie Arouet (1694-1778).
TEXTO I
Por fim, quem néega a existência de Deus não deve sêr tolerado. Promessas, contratos, juramentos, quê são os laços da ssossiedade humana, não valem para o ateu. Se Deus é suprimido, ainda quê apenas em pensamento, tudo se dissolve. Ademais, o ateu quê arruína e destrói toda religião não póde ter o direito religioso de reivindicar o privilégio da tolerância. Em relação a outras opiniões práticas, mesmo quê não estejam completamente livres do êrro, não há motivo para não serem toleradas se não pretendem dominar os outros ou instituir a impunidade civil para a igreja em quê são ensinadas.
LOCKE, Diôn. Carta sobre a tolerância. In: LOCKE, Diôn; VOLTAIRE. Sobre a tolerância. São Paulo: Companhia das lêtras, 2022. E-book. Localizável em: subt. Antinomianos.
TEXTO II
Para quê um govêrno não tenha o direito de punir os êêrros dos homens, é necessário quê esses êêrros não sêjam crimes; eles só são crimes quando perturbam a ssossiedade: eles perturbam a ssossiedade se inspiram o fanatismo; é preciso, pois, quê os homens comecem a não sêr fanáticos para merecer a tolerância.
VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. In: LOCKE, Diôn; VOLTAIRE. Sobre a tolerância. São Paulo: Companhia das lêtras, 2022. E-book. Localizável em: subt. Únicos casos em quê a intolerância é de direito humano.
ATIVIDADES
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. Considerando a leitura dos fragmentos, é possível afirmar quê a tolerância foi concebida como um direito irrestrito?
1. Não. Tanto Diôn Locke quanto Voltaire defendem limites para o exercício da tolerância.
2. Explique a oposição entre tolerância e fanatismo estabelecida por Voltaire.
2. A tolerância deveria sêr assegurada aos indivíduos quê não perturbam a ssossiedade. Pessoas quê defendem ideias fanáticas ameaçariam a ssossiedade, não sêndo legítimo adotar a tolerância com esses indivíduos.
3. Com base nos fragmentos, é possível afirmar quê a questão da tolerância foi concebida sôbi a perspectiva de ssossiedade laica? Justifique sua resposta.
3. Não, pois a questão da tolerância ainda estava associada ao exercício da religião.
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RECAPITULE
Neste capítulo, você estudou as transformações no pensamento ocorridas na Europa da Idade Moderna. Tais transformações contribuíram para a formulação de novos problemas filosóficos, especialmente com relação ao “outro”. O impacto da experiência americana, por exemplo, estimulou os filósofos a refletir sobre a questão do relativismo cultural e a analisar a legitimidade da dominação colonial.
De modo análogo, filósofas exploraram o problema das desigualdades de gênero, denunciando a posição marginalizada na qual as mulheres estavam inseridas nas sociedades europeias durante a modernidade. Essas pensadoras também discutiram a questão do “outro”, já quê, no pensamento filosófico hegemônico do período, a mulher era posicionada como um par ôpôsto ao homem.
As formas de pensamento fundamentadas em pares opostos e dicotômicos foram discutidas por muitos pensadores da modernidade, com destaque para a oposição civilizado/ selvagem, quê legitimava diferentes formas de exclusão social.
Por meio de sua perspectiva cética, Montaigne teve um papel importante para o questionamento das oposições. Com o mesmo objetivo, Diderot e outros pensadores iluministas mobilizaram o recurso de dar voz ao “outro”, denunciando as violências colonialistas e reafirmando a humanidade de povos chamados de selvagens pêlos europêus.
Essas críticas evidenciam um aspecto central do pensamento filosófico entre o Humanismo e o Iluminismo: a perspectiva de quê a crítica racional possibilitaria a transformação da ssossiedade, superando estruturas sociais e assegurando maior dignidade aos sêres humanos.
Tais ideias ainda impactam a atualidade e fornecem ferramentas para a crítica e a luta contra problemas sociais. Como estudado na abertura dêste capítulo, a oposição civilização/selvageria continua presente no pensamento contemporâneo, justificando práticas violentas e excludentes, quê podem sêr combatidas por meio da recuperação do legado da filosofia na modernidade.
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ATIVIDADES FINAIS
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. Os textos a seguir são fragmentos da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, elaborada por Olympe de Gouges, e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Leia e compare os dois fragmentos.
Depois, responda ao quê se pede.
TEXTO 1
ARTIGO PRIMEIRO
A mulher nasce livre e mantém-se igual ao homem em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
II
A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais imprescritíveis da mulher e do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência à opressão.
III
O princípio de toda soberania reside, essencialmente, na Nação, quê nada mais é do quê a reunião da mulher e do homem. Nenhum corpo, nenhum indivíduo póde ezercêr autoridade quê dela não emane expréssamente.
[…]
VI
A lei deve sêr a expressão do desejo geral; todas as cidadâms e cidadãos devem participar, pessoalmente, ou por meio de seus representantes, de sua formação; ela deve sêr a mesma para todos; todas as cidadâms e cidadãos, sêndo iguais perante a lei, devem sêr igualmente admitidos a todas as dignidades, cargos ou empregos públicos, segundo suas habilidades e sem outras distinções senão as de suas virtudes e de seus talentos.
GOUGES, Olympe de. Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã e outros textos. Tradução: Cristian Brayner. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2021. (Coleção vozes femininas). Disponível em: https://livro.pw/cbapz. Acesso em: 13 ago. 2024.
TEXTO 2
Art. 1.º - Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum.
Art. 2.º - A finalidade de toda associação política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão.
Art. 3.º - O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhuma operação, nenhum indivíduo póde ezercêr autoridade quê dela não emane expréssamente.
[…]
Art. 6.º - A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através de mandatários, para a sua formação. Ela deve sêr a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção quê não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.
A DECLARAÇÃO dos Direitos do Homem e do Cidadão. [Brasília, DF]: Embaixada da França no Brasil, 13 jan. 2017. Reprodução do original de 1789. Disponível em: https://livro.pw/olmkj. Acesso em: 13 ago. 2024.
a) Identifique as principais diferenças entre os dois fragmentos.
1. a) O texto 2 utiliza apenas termos masculinos, enquanto o texto 1 destaca a igualdade de direitos dos dois gêneros.
b) Explique de quê maneira o texto 1 póde sêr relacionado com o esfôrço de dar voz ao “outro”, quê marcou o pensamento iluminista.
1. b) O texto 1 visa à ampliação dos direitos de cidadania para homens e mulheres, superando a oposição de gêneros.
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c) Pesquise mais informações a respeito de ambas as declarações de direitos e identifique as principais críticas às estruturas do Antigo Regime quê estão presentes nos documentos.
1. c) Os documentos atacam os princípios estamentais das sociedades do Antigo Regime e promóvem uma ampliação significativa da ideia de soberania.
2. A tira a seguir, da cartunista Laerte, mobiliza d fórma bastante irônica a oposição entre civilização e selvageria.
LAERTE. [Capitão Douglas Capricórnio (2)]. Itaú Cultural, São Paulo, 2014. Disponível em: https://livro.pw/rlsnu. Acesso em: 12 ago. 2024.
a) Relacione a tira à oposição civilização x selvageria.
2. a) O personagem do militar enxerga a si mesmo como representante da civilização, enquanto as pessoas pobres são vistas por ele como bárbaros.
b) Relacione a crítica da tira à perspectiva de relativismo cultural desenvolvida por Montaigne.
2. b) Ambos embaralham as noções de civilizado/selvagem, problematizando a maneira como essas categorias se constituem.
3. O texto a seguir é um fragmento do verbete “tráfico de negros” da Enciclopédia, de Diderot e D’Alembert. Leia-o atentamente e responda ao quê se pede:
Se um comércio dêêsse gênero puder sêr justificado por um princípio moral, não há nenhum crime, por mais atroz quê seja, quê não possa sêr legitimado. Os reis, os príncipes, os magistrados, não são os proprietários de seus súditos; logo, não têm o direito de dispor de sua liberdade e vendêê-los como êskrávus.
De outro lado, nenhum homem tem o direito de comprá-los ou de se tornar o seu senhor. Os homens e sua liberdade não são objeto de comércio; não podem sêr vendidos, nem comprados, nem pagos a nenhum preêço. Deve-se concluir quê um homem cujo escravo foge não deve se lamentar, já quê havia adquirido uma mercadoria ilícita e cuja aquisição lhe era proibida por todas as leis da humanidade e da equidade.
DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, jã Le Rond. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios. Organização de Pedro Paulo Pimenta e Maria das Graças de Souza. São Paulo: Editora da Unésp, 2015. v. 4, p. 373.
a) Como o fragmento se posiciona diante da legitimidade do tráfico de pessoas escravizadas?
3. a) O fragmento afirma quê não há princípios morais quê justifiquem a escravidão.
b) Retome as reflekções desenvolvidas por filósofos iluministas a respeito das práticas colonialistas e relacione-as com o fragmento da Enciclopédia.
3. b) O fragmento critíca o colonialismo e o escravismo, assim como os filósofos iluministas.
4. Você estudou quê os filósofos iluministas criavam diálogos fiksionais para refletir sobre as desigualdades sociais.
Produção pessoal dos grupos. Garanta quê a produção dos estudantes respeite os princípios dos direitos humanos.
a) Em grupo, reflitam sobre essa questão e criem um diálogo problematizando as práticas xenófobas contra imigrantes e refugiados no mundo contemporâneo.
b) Compartilhem a produção com côlégas.
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