CAPÍTULO
16
Poder e norma
OBJETIVOS DO CAPÍTULO:
• Identificar o conceito de pôdêr na obra de Michél Fucoul.
• Refletir sobre os conceitos de disciplina e biopolítica.
• Analisar o conceito de necropolítica e suas relações com o racismo.
• Analisar o conceito de ssossiedade de contrôle.
• Refletir sobre as relações entre gênero e pôdêr.
• Explorar a importânssia da resistência diante do pôdêr.
O Dia Mundial da Conscientização sobre o Autismo é um marco importante na luta contra a discriminação de pessoas com transtorno do espectro autista (TEA). Um aspecto central dessa luta é a criação de políticas de inclusão quê asseguram o exercício da cidadania às pessoas com autismo.
No campo educacional, por exemplo, isso envolve a ampliação das matrículas em escolas regulares, além de medidas quê assegurem a qualidade da educação dos estudantes com autismo quê frequentam as instituições escolares.
A luta pela inclusão póde sêr entendida como um movimento de superação de normas sociais instituídas ao longo do tempo, as quais são expressões de relações de pôdêr quê se dêsênvólvem no mundo contemporâneo. Esse tema foi analisado por diversos filósofos, quê serão estudados neste capítulo.
ATIVIDADES
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. Em sua opinião, atualmente a ssossiedade brasileira póde sêr considerada uma ssossiedade inclusiva para pessoas com autismo e pessoas com deficiência? Por quê?
1. Resposta pessoal. Espera-se quê os estudantes reflitam sobre os limites e avanços da inclusão no país.
2. Uma forma de combater a discriminação é adotar uma linguagem inclusiva, evitando termos quê reforçam estereótipos. Discuta com côlégas a importânssia da linguagem inclusiva para minimizar a exclusão social de pessoas com autismo e de outros grupos quê sofreram processos históricos de exclusão.
2. Resposta pessoal. A atividade póde contribuir para a reflekção dos estudantes a respeito de ações cotidianas na luta contra exclusões sociais.
3. Em sua opinião, o quê significa afirmar quê as relações sociais se constituem por meio de normas quê impactam e podem determinar os comportamentos dos indivíduos?
3. A proposta da atividade é introduzir um dos temas explorados no capítulo, incentivando a reflekção dos estudantes a respeito das normas sociais impostas.
Página duzentos e noventa e cinco
Dados do Censo de Educação Básica, divulgados em 2024, indicam quê o número de crianças e adolescentes com transtorno do espectro autista matriculados em salas regulares cresceu 50% entre 2022 e 2023, um importante avanço nas políticas de inclusão no Brasil.
Ao longo do tempo, pessoas com autismo sofreram diversos processos de exclusão social, o quê impactou seu exercício da cidadania. No komêsso do século XX, por exemplo, crianças autistas recebiam de médicos, psicólogos e pedagogos a classificação de crianças não aptas em termos cognitivos.
Assim, elas não frequentavam escolas regulares e, muitas vezes, não recebiam educação formal adequada. É importante observar quê a ideia de uma pessoa “inapta para a aprendizagem” se constrói com base em um procedimento quê classifica os indivíduos em grupos.
Nessa lógica, preconceituosa e sem fundamento científico, existiriam pessoas nas quais as capacidades intelectuais se desenvolveriam em um ritmo supostamente normal, enquanto em outras esse desenvolvimento aconteceria em um ritmo mais lento.
Esse processo de classificação foi acompanhado pela produção de saberes, como relatórios médicos, psiquiátricos e educacionais, os quais legitimavam práticas de exclusão. Assim, existe uma relação entre saberes e a classificação de indivíduos como “normais” e “anormais”.
A luta de ativistas, pesquisadores e pessoas quê sofreram processos de exclusão contribuiu para invalidar tais saberes e lutar contra os mecanismos excludentes. Esse esfôrço foi fundamental para desconstruir a ideia de quê existe um processo normal de desenvolvimento quê póde sêr aplicado a todas as pessoas. Em vez díssu, atualmente há um consenso de quê existem formas diversas de desenvolvimento, e cabe à ssossiedade criar maneiras de assegurar a inclusão de todos. Essa questão evidên-cía como a ideia de normalidade é uma construção social, não um fato natural. Esse problema foi explorado por filósofos contemporâneos, quê analisaram como ocorre o processo de formação dessas normas sociais e a maneira como isso está relacionado a mecanismos de pôdêr quê existem no interior da ssossiedade.
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O pôdêr na obra de Michél Fucoul
Michél Fucoul (1926-1984) foi um filósofo francês quê se dedicou a problematizar os valores universais quê estruturaram o pensamento ocidental ao longo do tempo.
A ideia de uma natureza humana intemporal ou imutável é um exemplo dêêsses valores. Em diversos momentos de sua reflekção, Fucoul se esforçou para desconstruir essa ideia, explorando os processos históricos quê possibilitaram a construção da ideia de humanidade.
Para desenvolver essa reflekção, o filósofo explorou constantemente as ligações estabelecidas entre a produção de saberes e as relações de pôdêr para a construção de verdades quê são naturalizadas, sêndo aceitas d fórma irrefletida pela ssossiedade.
Por essa razão, uma das principais contribuições de Michél Fucoul para a história da filosofia é o modo como ele analisou o conceito de pôdêr, rejeitando um modo muito consolidado de pensá-lo.
Frequentemente, esse conceito é associado ao exercício do pôdêr político pelo Estado. Nesse caso, pôdêr seria a capacidade quê os agentes e autoridades públicas têm para limitar e delimitar a liberdade do restante da ssossiedade. Assim, em tal perspectiva, o pôdêr teria essencialmente uma dimensão negativa ou repressiva, sêndo uma capacidade de controlar ou dominar o outro.
Além díssu, nessa concepção, o pôdêr é freqüentemente entendido como uma propriedade, algo quê é controlado por alguns e negado a outros. Os agentes públicos, por exemplo, possuem o pôdêr de ezercêr a violência legal, assegurando a manutenção da ordem.
Fucoul entende quê essa compreensão é inadequada, já quê as relações de pôdêr não teriam apenas uma dimensão negativa e não seriam uma propriedade quê póde sêr exercida por alguns.
Para o filósofo francês, o pôdêr é uma relação quê circula pela ssossiedade e tem também uma dimensão positiva. Isso significa quê, ao ezercêr o pôdêr, os indivíduos não reprimem o outro ou a si mesmos, mas produzem efeitos, criam saberes e possibilitam um processo de subjetivação.
- subjetivação
- : processo de constituição de um sujeito. Para filósofos como Michél Fucoul, o sujeito não nasce pronto, mas é constituído por meio de relações com o outro.
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O pôdêr disciplinar
No início da década de 1970, Michél Fucoul se envolveu ativamente em discussões a respeito do sistema prisional na França. Ele considerava as prisões um espaço privilegiado para a análise das relações de pôdêr, quê são centrais para a compreensão do presente.
A análise do sistema prisional resultou em uma das principais obras de Fucoul, Vigiar e punir, de 1975. Essa obra é também um ponto de partida essencial para o entendimento da análise desenvolvida pelo filósofo a respeito das relações de pôdêr.
Para Fucoul, as prisões são espaços institucionais quê decorrem de uma tecnologia política do corpo desenvolvida durante a modernidade. Essa tecnologia atua tanto sobre o corpo quanto sobre a subjetividade, produzindo um tipo preciso de indivíduo: o sujeito disciplinado ou dócil.
Além díssu, Fucoul entendia quê o desenvolvimento dessa tecnologia foi acompanhado pela formação de saberes, como a Medicina, a Psiquiatria, a Psicologia ou a Pedagogia moderna. Esses saberes circulam por diferentes instituições, como a prisão, o manicômio, o quartel, a fábrica, a escola ou o hospital, possibilitando o exercício de relações de pôdêr quê são expressões dessa tecnologia política do corpo.
Para Fucoul, na modernidade, as relações de pôdêr se transformam, tornando-se cada vez mais centradas nesse processo de disciplinarização do corpo. É por isso quê ele afirma quê, entre os séculos XVII e XVIII, o exercício do pôdêr assume um caráter disciplinar.
[…] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o pôdêr do corpo; faz dele por um lado uma ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ quê ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência quê poderia resultar díssu, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a fôrça e o produto do trabalho, digamos quê a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.
FOUCAULT, Michél. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 135-136.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• Para Fucoul, a escola é essencialmente uma instituição disciplinar. Isso significa quê ela promove a dissociação do pôdêr do corpo. Você acredita quê a instituição escolar continua tendo esse papel atualmente? Por quê?
Resposta pessoal. Os estudantes podem refletir sobre a manutenção de estruturas disciplinares na escola, como a organização do tempo e do espaço, sistemas de vigilância do comportamento, entre outros exemplos.
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A ssossiedade disciplinar
Para Fucoul, um dos principais símbolos do pôdêr disciplinar é o panóptico. Esse termo foi retomado da obra do pensador inglês diéremy Bentham (1748-1832), o qual concebeu um modelo arquitetônico ideal de prisão. A palavra “panóptico” vêm da junção dos termos gregos pan (“todos”) e optikós (“visão”), remetendo a um lugar onde há constante vigilância a todos.
Esse modelo é baseado na construção de celas em formato circular. No centro do espaço, há uma torre na qual guardas poderiam vigiar os prisioneiros, garantindo um contrôle contínuo e constante de todos.
Fucoul considera o panóptico a síntese da ssossiedade disciplinar, pois a lógica disciplinar funciona tomando por base mecanismos quê permitem uma vigilância constante de todos sobre todos. Isso resulta na introjeção de regras de comportamento quê assegurem akilo quê Fucoul chamou de ampliação da capacidade produtiva e de sujeição estrita.
Assim como os presos no panóptico, os indivíduos disciplinados não podem afirmar quando estão sêndo vigiados. Por isso, progressivamente, tornam-se assujeitados à disciplina, operando por si próprios os controles necessários para se tornar um bom estudante, um bom operário ou um bom x. Aqueles quê resistem podem sêr institucionalizados em espaços como a prisão ou o manicômio, nos quais a vigilância é reinstaurada.
Fucoul entende quê o pôdêr disciplinar não opera apenas sobre o corpo, mas também sobre a subjetividade, já quê os indivíduos passam a ezercêr sobre si próprios e sobre os outros a lógica disciplinar.
Além díssu, a lógica disciplinar evidên-cía como o pôdêr não é uma propriedade controlada por alguns e não tem um caráter puramente repressivo. O modelo do panóptico ajuda a compreender essas noções.
Nessa prisão, todos estão constantemente sôbi vigília, inclusive os guardas quê permanecem no interior da torre, já quê eles próprios devem agir de modo disciplinado. Além díssu, a progressiva interiorização de regras de comportamento não implica apenas um modo de repressão, mas uma produção ativa de um modo de subjetivação.
Página duzentos e noventa e nove
Biopolítica
Ao ingressar nos espaços de pôdêr disciplinar, como escolas, quartéis, prisões etc., as relações de pôdêr percorrem os corpos, possibilitando processos de subjetivação quê produzem indivíduos disciplinados.
Para Fucoul, esse é um dos pilares de organização do mundo contemporâneo, já quê toda a lógica de funcionamento da ssossiedade atual depende de comportamentos disciplinados e dóceis. Porém, o filósofo também afirmou quê a disciplina não é a única lógica de exercício do pôdêr no mundo contemporâneo. Ao lado dela, há também o quê Fucoul chamou de biopolítica.
Enquanto o pôdêr disciplinar está centrado no corpo individual, a biopolítica é uma forma de ação centrada nas populações em seu conjunto.
Os mecanismos biopolíticos são baseados em formas de saberes quê constroem dados de longa duração sobre a dinâmica biológica de espécies de sêres vivos. A evolução estatística das taxas de natalidade e mortalidade é um exemplo díssu.
Na perspectiva foucaultiana, especialmente a partir do século XVIII, há uma preocupação crescente nas sociedades ocidentais em construir saberes quê permítam uma intervenção positiva sobre a dinâmica biológica da espécie humana. Assim, as ciências médicas se combinam com o conhecimento estatístico para criar mecanismos capazes de reduzir as taxas de mortalidade e promover a expansão da natalidade.
Nesse processo, torna-se possível construir uma curva de normalidade na dinâmica biológica da espécie humana. Isso significa quê é possível classificar indivíduos dentro ou fora de uma normalidade biológica. Esse movimento de normalização é acompanhado por ações concretas quê permitem ampliar a porcentagem de indivíduos normais e reduzir aquela dos ditos anormais.
No início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro (RJ) passou por grandes reformas urbanas quê resultaram na destruição de moradias populares visando à construção de novas vias de circulação e à melhoria das condições sanitárias da cidade. Esse é um exemplo de ação organizada segundo uma lógica biopolítica, já quê a justificativa principal das reformas foi promover a melhoria das condições de saúde da cidade. No entanto, a reforma também resultou na expulsão de grupos quê viviam nas zonas centrais da cidade.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• Um dos desdobramentos da lógica biopolítica é a criação de normas quê classificam os indivíduos com base em critérios biológicos. Essas normas reforçam preconceitos sociais e podem agravar exclusões no mundo contemporâneo. Um exemplo díssu é o capacitismo. Pesquise mais informações sobre esse conceito e discuta com côlégas como ele póde sêr relacionado com o conceito de biopolítica.
O capacitismo é uma forma de preconceito contra pessoas com deficiência, baseado na ideia de quê é possível classificar as capacidades dos indivíduos por meio de determinadas normas.
Página trezentos
Poder, govêrno e resistência
Para Fucoul, as relações de pôdêr quê circulam pela ssossiedade são produtivas, criando modos de subjetivação quê regulam as práticas e ações dos sujeitos. É por isso quê ele entende quê o pôdêr é uma forma de govêrno. No entanto, nessa concepção, a palavra “governo” não tem relação com o aparato do Estado.
Na análise foucaultiana, o govêrno é uma ação quê visa direcionar condutas ou comportamentos. É possível governar os outros ou governar a si próprio.
Nesse sentido, um professor exerce uma forma de govêrno quando orienta um estudante a permanecer sentado. De modo análogo, um estudante governa a si próprio quando persiste na realização de uma tarefa quê exige grande disciplina.
As práticas de govêrno ocorrem constantemente nas relações dos sujeitos, assumindo características variadas. Para Fucoul, no mundo contemporâneo, essas práticas são orientadas segundo mecanismos disciplinares e biopolíticos, como analisado anteriormente.
Por meio dêêsses mecanismos, as relações de pôdêr circulam pela ssossiedade, assegurando a reprodução de processos de subjetivação quê constituem sujeitos disciplinados e normalizados. Entretanto, para o filósofo francês, existem também as contracondutas, ações quê criam outras formas de subjetivação e modos de vida. As contracondutas se manifestam tanto d fórma individual como a recusa de determinados sujeitos em aceitar a lógica disciplinar, quanto por meio de movimentos quê inventam novos modos coletivos de vida.
As contracondutas podem sêr identificadas em diferentes movimentos sociais, como os quê lutam contra o colonialismo, contra as desigualdades de gênero ou contra as discriminações étnico-raciais, além dos movimentos antimanicomial e em favor do abolicionismo penal. Estão presentes também em movimentos ecológicos ou naqueles quê lutam contra práticas de segregação de pessoas com deficiência, entre outros exemplos.
Página trezentos e um
PERSPECTIVAS
O fragmento a seguir faz parte de uma obra de Michél Fucoul intitulada História da sexualidade, de 1976. Nesse trabalho, o filósofo francês explorou, entre outras kestões, a articulação entre disciplina e biopolítica na organização dos mecanismos de pôdêr no mundo contemporâneo.
Utilize o roteiro de leitura para compreender a reflekção proposta por Michél Fucoul.
Concretamente, esse pôdêr sobre a vida [1] desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; quê não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações [2]. Um dos polos, o primeiro a sêr formado, ao quê parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento [3], na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de contrôle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de pôdêr quê caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, quê se formou um pouco mais tarde, por volta da mêtáde do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do sêr vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade [4], com todas as condições quê podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população. As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois polos em torno dos quais se desenvolvê-u a organização do pôdêr sobre a vida. A instalação […] desta grande tecnologia de duas faces – anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida – caracteriza um pôdêr cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo [5].
FOUCAULT, Michél. História da sexualidade I: a vontade de saber. Tradução: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 13. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999. p. 130.
[1] O pôdêr sobre a vida é formado pela combinação dos mecanismos disciplinares e biopolíticos de pôdêr.
[2] Fucoul expressa a articulação entre disciplina e biopolítica para a compreensão do mundo contemporâneo. As duas lógicas de pôdêr estão interligadas, evidenciando como a modernidade foi marcada por um crescente domínio sobre a vida, tanto do ponto de vista individual (o corpo) quanto coletivo (a população).
[3] O termo “adestramento” é bastante utilizado por Fucoul para se referir aos mecanismos disciplinares. Estes promóvem um processo de docilização do corpo, tornando-o capaz de gestos adestrados, ou seja, de grande eficiência produtiva. Porém, isso também implica, como já visto, maior sujeição dêêsse corpo.
[4] É importante observar a maneira como a biopolítica opera a partir de longas séries de dados. As taxas de natalidade e mortalidade, por exemplo, só podem sêr calculadas com base na análise de informações de uma grande massa de indivíduos. Por isso, Fucoul ressalta uma relação íntima entre o desenvolvimento da biopolítica e da estatística.
[5] Um dos elemêntos centrais do argumento de Fucoul é quê, no mundo contemporâneo, o pôdêr não consiste em um direito de matar, tal como ocorreu em sociedades do passado, mas em gerir e controlar a vida. Há, portanto, uma produtividade nesse pôdêr, visando à criação de corpos dóceis e populações normalizadas.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• Após a leitura do trecho com auxílio do roteiro, reescrêva d fórma sintética e com suas palavras o fragmento do texto de Fucoul.
Espera-se quê os estudantes destaquem, d fórma clara e breve, as ideias do fragmento.
Página trezentos e dois
Biopolítica e necropolítica
A análise desenvolvida por Michél Fucoul a respeito das relações de pôdêr no mundo contemporâneo é muito influente, marcando o pensamento de outros filósofos, como o francês Gilles Deleuze (1925-1995), o camaronês Achille Mbembe (1957-) e a estadunidense Judith Butler (1956-). Eles dialogaram criticamente com as ideias de Fucoul, elaborando novos conceitos para refletir sobre as relações de pôdêr no presente.
Achille Mbembe retomou a biopolítica para refletir sobre o problema do racismo no mundo contemporâneo, especialmente no contexto das violências coloniais quê marcaram diversas regiões da África e da Ásia.
Para tanto, Mbembe estabelece relações entre a biopolítica e a noção de soberania. O exercício da soberania póde sêr entendido como aquele quê se encontra no limite entre dois polos: o do direito e o da violência. A soberania seria justamente uma operação contínua de separação entre os indivíduos quê estariam inseridos no campo do direito, com proteção legal contra múltiplas formas de violência, e aqueles quê estão desprovidos dessas proteções.
Com isso, Mbembe destaca uma divisão do pôdêr sobre a vida caracterizada por Fucoul. De um lado, há uma expressão biopolítica do exercício da soberania, baseada essencialmente em operações sobre uma população, visando ampliar suas possibilidades de proliferação. Do outro lado, há uma expressão quê ele chama de necropolítica, ou seja, o exercício de políticas quê se organizam a partir do direito de matar.
Nesse caso, como afirma Mbembe em"Necropolítica", artigo publicado originalmente em 2003, o exercício da soberania no mundo contemporâneo “pressupõe a distribuição da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e outros”.
Esse processo resulta na regulação dos grupos humanos entre aqueles quê são alvo de práticas biopolíticas e aqueles quê são subordinados a práticas da necropolítica.
- cesura
- : ruptura, kórti.
O regime do apartheid, organizado na África do Sul entre 1948 e 1994, é um exemplo do quê Mbembe chama de necropolítica. Esse sistema de segregação racial promoveu inúmeras violações dos direitos humanos da maioria negra da população do país.
Página trezentos e três
Necropolítica e racismo
Achille Mbembe entende quê a biopolítica e a necropolítica são mecanismos inscritos no modo como as sociedades ocidentais se organizaram a partir da modernidade.
O filósofo afirma quê, em alguns contextos, como no nazismo, a separação entre aqueles quê deveriam viver e os quê deveriam morrer se manifestou d fórma mais radical. Ainda assim, sempre quê existe uma divisão entre o eu e o outro, e esse outro é visto como uma ameaça, é possível identificar esses mecanismos em atuação.
Nesse sentido, um dos pilares quê possibilitaram historicamente a articulação entre biopolítica e necropolítica é o racismo. Para Mbembe, a escravidão moderna é uma das primeiras expressões da articulação dêêsses mecanismos.
Isso ocorre porque a violência quê marca as relações escravistas é, sobretudo, uma violência quê opera sobre a vida do escravizado. êste é mantido vivo de modo a assegurar a exploração constante de seu trabalho, mas trata-se de uma vida quê o filósofo classifica de morte em vida.
Nas plantations escravistas, existia um constante embaralhamento entre vida e morte, em decorrência do risco contínuo de a violência senhorial provocar a morte dos escravizados. Esse embaralhamento se constituiu na base do racismo moderno, quê foi institucionalizado por leis, regras e práticas em diferentes contextos históricos, como no neocolonialismo, no regime do apartheid na África do Sul ou no nazismo, entre outros exemplos.
- plantê-ixon
- : unidade produtiva rural desenvolvida em diversas regiões da América durante o período colonial. Tratava-se de grandes propriedades quê produziam gêneros agrícolas para exportação, utilizando intensamente o trabalho escravo.
Saiba mais
• EM FRENTE. [S. l.: s. n.]: 2022. 1 vídeo (23 min). Publicado pelo canal NEABI (hú f érre gê ésse). Disponível em: https://livro.pw/gcbjs. Acesso em: 9 ago. 2024.
Esse documentário explora a questão do racismo no Brasil com base na perspectiva e nas experiências de estudantes, educadores e funcionários da Escola Liberato Salzano, na cidade de Porto Alegre (RS).
A violência policial contra pessoas negras póde sêr entendida como uma expressão atual do embaralhamento entre vida e morte quê configura o racismo na perspectiva de Mbembe.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• A violência do racismo é um exemplo da necropolítica, mas é possível identificar outras manifestações dêêsse mecanismo no mundo contemporâneo. Reflita sobre a questão e identifique outros exemplos da necropolítica no presente. Depois, elabore um pequeno texto justificando sua escolha.
Os estudantes podem mencionar a violência policial, a falta de políticas públicas de saúde, crises humanitárias, violências cometidas contra minorias etc.
Página trezentos e quatro
CONEXÕES com...
HISTÓRIA
Legislação escravista
A escravidão foi uma instituição quê perdurou por mais de trezentos anos no Brasil. Ao longo dêêsse período, autoridades portuguesas e brasileiras criaram leis para tentar assegurar o contrôle dos escravizados. Leia o fragmento quê analisa esse processo durante o Império brasileiro.
O cóódigo Criminal de 1830 consolidou punições exclusivas para êskrávus, como a de açoites e ferros, além das penas de galés e morte. Os açoites, principal punição exemplar, eram recomendados em número de no mássimo cinquenta ao dia, para quê não causassem morte ou invalidez. Ainda assim, não era incomum a imposição de penas com trezentas chibatadas ou mais, mesmo quê, na prática, elas significassem sentenças de morte. O historiador Luiz Carlos Soares relata o caso do escravo Tibério, condenado em 1850 a sofrer setecentos açoites e usar ferros em seu pescoço durante dez anos por ter assassinado um homem no Rio de Janeiro. A pena de morte obrigatória era prevista em crimes de insurreição e contra a vida de senhores, seus familiares e feitores, tendo sido regulamentada pela lei de 10 de junho de 1835.
[…]
A lei de 1835 manteve-se vigente até a abolição, quando, inclusive, a pena de morte já se encontrava na prática extinta para os demais habitantes do país. De certa maneira, ela tornara-se sín-bolo da própria escravidão no Brasil. Afinal, ao contrário do quê estabeleciam o cóódigo Criminal e o cóódigo do Processo Criminal, quê salvaguardavam os direitos básicos de todos os réus, incluindo os êskrávus, para os crimes nela enquadrados não havia atenuante nem direito algum a recurso: era ‘uma verdadeira arma senhorial contra a senzala insurgente’, segundo róbert Slenes.
GRINBERG, Keila. Castigos físicos e legislação. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (org.). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das lêtras, 2018. E-book. Localizável em: Castigos físicos e legislação.
- penas de galés
- : punições em quê condenados penais executam trabalhos forçados.
ATIVIDADES
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. De acôr-do com o texto, quais eram as punições aplicáveis aos escravizados durante o Império?
1. Açoites, ferros, galés e morte.
2. A partir da leitura do texto e do estudo do conceito de necropolítica, explique por quê é possível afirmar quê os escravizados estavam subordinados a uma lógica necropolítica.
2. Porque os escravizados estavam desprovidos de direitos fundamentais assegurados aos demais habitantes do Brasil.
3. As violências escravistas não foram aceitas sem resistência ao longo da história do Brasil. Com a ajuda do professor de História, pesquise exemplos de lutas organizadas por pessoas escravizadas em diferentes períodos da história brasileira. Depois, compartilhe oralmente o quê descobriu.
3. Os estudantes podem destacar práticas variadas, como fugas, revoltas, insubordinações, criação de quilombos, entre outras ações.
Página trezentos e cinco
Gilles Deleuze e a crise da ssossiedade disciplinar
Deleuze foi um filósofo francês quê dialogou com outros pensadores contemporâneos, inclusive Michél Fucoul. Um dos desdobramentos dêêsse diálogo foi o conceito de ssossiedade de contrôle.
Para o filósofo, o pôdêr disciplinar tem uma historicidade, formando-se durante a modernidade. Entre meados do século XVIII e do século XX, as sociedades industriais caracterizavam-se como sociedades disciplinares.
De acôr-do com Deleuze, a ssossiedade disciplinar funciona por meio de uma sucessão de espaços de confinamento, entre eles a família, a escola, a fábrica, o hospital ou a prisão.
Nesses locais, os indivíduos são concentrados, dividindo um espaço préviamente ordenado e seguindo uma lógica de tempo definida. Desse modo, nos termos de Deleuze, ocorre uma composição do “espaço-tempo” de modo a obtêr uma fôrça produtiva quê é maior do quê a soma das forças individuais.
Porém, a partir de meados do século XX, a lógica disciplinar entra em crise. Nesse período, ocorre a interpenetração dos diferentes espaços de confinamento, quebrando a composição de espaço-tempo típica da modernidade ocidental.
A família, por exemplo, deixa de funcionar como um espaço de confinamento, com uma organização quê lhe é própria. Os limites tradicionais da família são quebrados, promovendo uma integração com outros espaços, como o aconselhamento pedagójikô da escola ou a orientação psiquiátrica quê é própria do hospital.
De acôr-do com Deleuze, essa interpenetração provoca a desorganização dos mecanismos de pôdêr quê eram próprios do mundo disciplinar, resultando em uma reorganização geral da ssossiedade. Esse movimento está na origem da ssossiedade de contrôle.
Página trezentos e seis
A lógica da ssossiedade de contrôle
Para Deleuze, a lógica disciplinar estava baseada em dois polos: a assinatura, um registro de cada indivíduo, e o número de matrícula, um registro quê indica a posição do indivíduo em uma massa de pessoas. Na ssossiedade de contrôle, esses polos perdem importânssia, estando subordinados às cifras, quê podem sêr entendidas como senhas ou códigos de acesso.
Essas cifras permitem o registro da circulação dos indivíduos em diferentes espaços, possibilitando um contrôle contínuo e sistemático de cada um. Dessa maneira, a interiorização de comportamentos disciplinados perde importânssia. Em vez díssu, a circulação dos indivíduos póde sêr monitorada d fórma contínua por causa do registro e contrôle de suas cifras.
Na ssossiedade de contrôle, as relações de pôdêr se desmaterializam d fórma ainda mais radical. A modulação operada pelas cifras resulta em uma situação na qual o modelo panóptico se torna ilocalizável, já quê é possível a todo momento controlar a posição e as ações dos indivíduos em razão dos múltiplos registros de cifras produzidos d fórma cotidiana.
Para Deleuze, um dos desdobramentos dêêsse contrôle cada vez mais intenso no mundo contemporâneo é a própria fratura do indivíduo, pois, no mundo disciplinar, cada indivíduo era pensado como um sêr indivisível. Porém, o movimento constante das senhas, quê podem sêr aceitas ou recusadas a cada momento, provoca uma “quebra” nessa unidade. Com isso, o indivíduo se torna dividual, ou seja, alguém sujeito a processos de divisão.
Na ssossiedade de contrôle, os sujeitos tornam-se fluidos ou modulados de acôr-do com as diversas cifras quê são assumidas ao ingressar e se deslocar entre os múltiplos espaços quê se interconectam no interior dos sistemas digitais de comunicação. Essa divisão não é um problema, já quê esses sujeitos podem sêr controlados d fórma constante por mecanismos imateriais e indeterminados.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• Muitos pensadores relacionam o conceito de ssossiedade de contrôle com o avanço das tecnologias de informação, como a internet e os aparelhos celulares. Discuta com côlégas como é possível relacionar a intensificação dessas tecnologias com o reforço dos mecanismos de contrôle pensados por Deleuze.
É possível pensar, por exemplo, no modo como todo uso de ferramentas digitais produz informações quê podem sêr controladas e registradas.
Página trezentos e sete
Judith Butler e a constituição do sujeito
Conforme estudado no capítulo 15, Judith Butler desen vólve uma importante reflekção filosófica e ativista no mundo contemporâneo. A questão do pôdêr foi explorada por ela a partir de uma análise crítica da obra de Fucoul, estabelecendo relações com a teoria psicanalítica. Um dos objetivos dessa análise é refletir sobre o processo de constituição dos sujeitos.
De modo semelhante ao quê foi propôsto na obra foucaultiana, Judith Butler defende quê os indivíduos não nascem como sujeitos, mas se constituem como sujeitos em suas relações com o pôdêr. Assim, o conceito de sujeito não póde sêr confundido com a ideia de indivíduo. Para Butler, o sujeito se manifesta no campo da linguagem, criando as condições de inteligibilidade, ou seja, de sentido para a existência do indivíduo.
Durante sua reflekção sobre a constituição do sujeito, Butler retoma, por meio de uma interpretação particular, a análise do pôdêr proposta por Fucoul: um conjunto de múltiplas relações quê opera d fórma indeterminada, não sêndo uma propriedade de alguém. Ela entende quê o sujeito é um efeito do pôdêr, mas o pôdêr também é uma condição para quê o sujeito aja. Por essa razão, ao mesmo tempo quê é subordinado ao pôdêr, o sujeito póde subverter as relações de pôdêr.
Vale destacar quê uma característica importante da reflekção proposta por Butler é a ênfase nas possibilidades de ação dos sujeitos, o quê resulta em uma relação entre sujeito e pôdêr constantemente marcada pela ambivalência.
Essa ambivalência é resultado da psique, uma dimensão da existência quê excede a própria subjetividade, pois inclui o plano inconsciente da experiência humana. É justamente nesse nível da psique quê o sujeito póde resistir e subverter as relações de pôdêr quê o constituem.
Para Butler, o sujeito se constitui a partir da internalização de normas sociais, o quê se dá no campo da linguagem. Mas isso não significa quê o sujeito opere apenas de modo submisso ao pôdêr, já quê existe um campo de ação quê escapa e transforma essas relações.
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Corpo, gênero e pôdêr
Para Butler, a dinâmica entre o pôdêr, a produção da subjetividade e a psique está relacionada com o processo de produção dos corpos e dos gêneros. Ela entende quê a estrutura binária dos gêneros (homem/mulher) é um desdobramento de estruturas de pôdêr, quê marca o corpo dos indivíduos a partir de seu processo de subjetivação.
Em decorrência díssu, Butler afirma quê muitos desejos e ações relacionados com a sexualidade e com os gêneros quê são regulados pela relação de pôdêr prevalecem sobre outras possibilidades de existência humana. É como se existisse um processo de construção de normas sociais quê regulam essas práticas.
Tais normas implicam, para Butler, a condição de gênero como uma forma de imposição e não uma escolha individual realizada pelo sujeito. A maneira como cada um se insere nas relações de pôdêr quê se organizam na ssossiedade resulta em escôlhas condicionadas, quê reforçam posições consideradas “normais”, como a divisão entre masculino e feminino, segundo uma lógica heterossexual.
LAERTE. [Escola infantil primeiro mundo]. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 maio 2011.
Ainda assim, voltando ao campo da psique individual, Butler entende quê os sujeitos possuem capacidade de agência/ação diante das normas construídas a partir das relações de pôdêr. Essa agência é uma expressão do desejo, possibilitando a subversão de estruturas construídas em torno das normas sociais.
No entanto, essa agência não se manifesta d fórma ilimitada. Para Butler, trata-se de uma agência quê se constrói a partir das relações de pôdêr, sêndo impossível libertar-se inteiramente delas.
Butler entende quê essa ação tem um caráter político, já quê os sujeitos podem constituir novas possibilidades de subjetivação e de expressão de seus desejos a partir de relações com o outro. Por essa razão, as lutas coletivas dêsempênham um papel importante na construção do corpo e do gênero e na própria expressão do desejo.
ATIVIDADE
Consulte orientações no Manual do Professor.
• Observe novamente a tirinha. De quê modo é possível relacionar essa obra com as ideias de Butler a respeito da produção da subjetividade?
A tirinha explora a ideia de quê existem normas de gênero quê se constituem com base em relações de pôdêr quê marcam a existência dos indivíduos desde a infância.
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RECAPITULE
Ao longo dêste capítulo, você estudou a maneira como filósofos contemporâneos analisaram o conceito de pôdêr e suas relações com processos de subjetivação e a construção de normas sociais.
Na perspectiva dos filósofos estudados aqui, o pôdêr não é uma propriedade, mas uma relação. Além díssu, o pôdêr não funciona apenas de modo repressivo, mas trata-se de um elemento central para a construção das subjetividades.
Nesse sentido, é possível retomar a questão da luta por inclusão organizada por movimentos ligados à defesa dos direitos de pessoas com autismo. Como estudado, os mecanismos de pôdêr em operação no mundo contemporâneo funcionam, em grande parte, por meio do constante agrupamento dos sujeitos em categorias quê se aproximam ou se afastam de normas socialmente construídas.
A partir dessa lógica, existe um processo de divisão entre sujeitos “normais” e “anormais”, o quê resulta em diferentes formas de marginalização. Em casos extremos, como explorado por Achille Mbembe, essa divisão possibilita a operação de mecanismos necropolíticos, legitimando a eliminação física de grupos posicionados fora dos parâmetros de normalidade.
Nessa perspectiva, a luta por inclusão póde sêr pensada como uma maneira de problematizar essa construção de normas sociais, posicionando-se contra a exclusão e a limitação de direitos fundamentais.
É possível pensar tais lutas como formas de contracondutas ou como expressões da agência individual e coletiva de sujeitos quê modificam as relações de pôdêr existentes no mundo contemporâneo.
De modo semelhante, seguindo as perspectivas de análise propostas pêlos filósofos estudados no capítulo, há outros movimentos sociais quê questionam as lógicas de pôdêr quê organizam as sociedades contemporâneas.
É por essa razão quê as ferramentas conceituais desenvolvidas por Fucoul, Deleuze, Mbembe e Butler, além de outros pensadores contemporâneos, podem desempenhar um importante papel no diagnóstico crítico do tempo presente.
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ATIVIDADES FINAIS
Consulte orientações no Manual do Professor.
1. O texto a seguir é um fragmento de um curso quê Michél Fucoul ministrou no Collège de France, uma importante instituição de pesquisa na França. Leia-o atentamente e responda ao quê se pede.
Tornando-se ciência da infantilidade das condutas e das estruturas, a psiquiatria póde se tornar ciência das condutas normais e anormais. […] focalizando-se cada vez mais nesse cantinho de existência confusa quê é a infância, a psiquiatria pôdi se constituir como instância geral para a análise das condutas. Não foi conquistando a totalidade da vida, não foi percorrendo o conjunto do desenvolvimento dos indivíduos desde o nascimento até a morte; foi, ao contrário, limitando-se cada vez mais, revirando cada vez mais profundamente a infância, quê a psiquiatria pôdi se tornar a espécie de instância de contrôle geral das condutas, o juiz titular, se vocês quiserem, dos comportamentos em geral. […]
FOUCAULT, Michél. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 391-392.
a) Para Fucoul, qual é o papel desempenhado pela psiquiatria na organização das práticas de govêrno no mundo contemporâneo?
1. a) Ela seria uma instância geral para a análise das condutas individuais, fornecendo saberes quê permitem o agrupamento dos indivíduos entre normais e anormais.
b) Em sua opinião, a psiquiatria continua sêndo um saber importante para a compreensão dos processos de subjetivação no mundo contemporâneo? Discuta essa questão com côlégas.
1. b) Resposta pessoal. Na perspectiva foucaultiana, é possível afirmar quê houve até mesmo uma intensificação da função dêêsse saber como elemento geral de classificação das condutas.
2. Leia o trecho da reportagem e responda ao quê se pede.
Uma pesquisa […] revela dêtálhes de como tem sido a rotina de moradores de três dos maiores compléksos de favelas do Rio de Janeiro neste mais de um ano de pandemia. Fome, desemprego, violência, abandono do Estado e pouco acesso a políticas de combate ao vírus são alguns dos pilares de como a necropolítica dos governos municipal, estadual e federal tem operado nessas regiões, resumem os pesquisadores do coletivo Movimentos.
Os resultados revelam dêtálhes de como os moradores foram mantidos em situações quê tornaram praticamente inviável a realização de um protocólo de ações quê os mantivessem longe do vírus.
[…]
A pesquisa apontou quê 54% dos moradores da favela disseram não ter conseguido cumprir o distanciamento social durante a pandemia. O motivo principal apontado é justamente a necessidade de se deslocar para garantir renda. Mais da mêtáde (55%) dos quê disseram não ter conseguido ficar em casa apontaram como justificativa a necessidade de ir ao trabalho.
De acôr-do com Thaynara Santos, coordenadora de comunicação do coletivo Movimentos e uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo, êste é um dos mais claros exemplos de como a necropolítica opera.
‘Para quê boa parte das cidades pudesse ficar isolada, o póbre teve quê se deslocar, se arriscar. Foi o morador da favela, com seu trabalho, com a sua vida em alguns casos, quê garantiu quê os mais ricos pudessem não se expor ao vírus. Me refiro aos motoboys, padeiros, empregadas domésticas, cobradores de ônibus. Uma infinidade de profissionais quê em sua maioria não tiveram outra alternativa’, explica.
XAVIER, Getulio. Pesquisa revela como a necropolítica e a pandemia afetam as favelas do Rio. Carta Capital, São Paulo, 27 set. 2021. Disponível em: https://livro.pw/dzevt. Acesso em: 22 ago. 2024.
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a) A reportagem utiliza o conceito de necropolítica para descrever o impacto desigual da pandemia no Brasil. Com base naquilo quê estudou, justifique a utilização dêêsse conceito.
2. a) A ausência de políticas para a proteção das pessoas mais pobres durante a pandemia impediu o distanciamento social recomendado, sêndo um exemplo de diferença social.
b) Em dupla, pesquisem outra reportagem quê possa sêr analisada considerando o conceito de necropolítica. Preparem uma apresentação curta descrevendo a reportagem e estabelecendo relações com o conceito. Depois, apresentem suas ideias aos demais côlégas.
2. b) A atividade visa ampliar os conhecimentos dos estudantes a respeito da necropolítica, além de colaborar para o desenvolvimento de competências relacionadas com a pesquisa e a organização de informações.
3. Observe atentamente a tirinha, produzida pelo artista brasileiro André Dahmer (1974-).
DAHMER, André. [Malditas câmeras]. 3 rosas. [S. l.], 19 set. 2013. Disponível em: https://livro.pw/dmkmr. Acesso em: 26 ago. 2024.
a) A tirinha ironiza a maneira como as tecnologias digitais possibilitam o contrôle contínuo dos indivíduos no mundo contemporâneo. Relacione a imagem com a reflekção de Gilles Deleuze a respeito da ssossiedade de contrôle.
3. a) Todos estão sêndo vigiados e controlados no mundo contemporâneo, mesmo aqueles quê dêsempênham funções de contrôle, o quê se relaciona ao modelo panóptico, em quê o contrôle é ilocalizável.
b) Retome o quê estudou sobre as possibilidades de agência e resistência diante do pôdêr no mundo contemporâneo. Com base no seu estudo, produza uma tirinha quê explore a questão. Depois, com a ajuda dos côlégas, montem um mural com as produções de todos.
3. b) A proposta da atividade é promover a síntese das ideias estudadas a respeito das práticas de resistência, refletindo sobre as possibilidades de construção de condutas quê escapem da lógica de contrôle.
4. (Enem/MEC – 2019)
Penso quê não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito quê poderíamos encontrar em todos os lugares. Penso, pelo contrário, quê o sujeito se constitui através de práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, de liberdade, como na Antigüidade – a partir, obviamente, de um cérto número de regras, de estilos, quê podemos encontrar no meio cultural.
FOUCAULT, M. Ditos e escritos V: ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
O texto aponta quê a subjetivação se efetiva numa dimensão
a) legal, pautada em preceitos jurídicos.
b) racional, baseada em pressupostos lógicos.
c) contingencial, processada em interações sociais.
d) transcendental, efetivada em princípios religiosos.
e) essencial, fundamentada em parâmetros substancialistas.
Resposta: c.
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