Podcast Ícone de Podcast

Comida e colonialismo

Transcrição

(Narradora) Comida e colonialismo

(vinheta)

(Narradora) Neste podcast vamos falar sobre a influência do colonialismo na alimentação. De acordo com os pesquisadores Walter Mignolo e Aníbal Quijano, o colonialismo permaneceu reverberando nas esferas política, econômica e cultura dos países independentes. Mesmo após a emancipação das metrópoles, as estruturas de dominação colonial continuaram a influenciar diversos aspectos do cotidiano, em países como o Brasil. Essa continuidade, a qual os pesquisadores chamam de colonialidade, se expressa em nosso país, por exemplo, por meio das práticas, dos hábitos e dos sistemas alimentares que temos hoje.

Reflita por um momento sobre os alimentos que compõem nossa dieta, o modo como os preparamos e os consumimos. Agora, considere que nossa alimentação resulta de um processo marcado tanto por imposições dos colonizadores no passado, quanto pelas dinâmicas globais de produção e distribuição de alimentos no presente.

No Período Colonial, os europeus introduziram seus hábitos alimentares nas colônias, por acreditarem que a dieta dos povos originários tinha baixa qualidade. Quer saber mais sobre isso? Ouça a explicação da nutricionista, socióloga da alimentação e professora universitária Elaine de Azevedo, no episódio “Comida e colonialidade”, do podcast Panela de Impressão.

(Entrevistada Elaine de Azevedo – Nutricionista) “Outro modo de exercer o poder colonialista e manter a hegemonia sociocultural da Europa foi supervalorizar os alimentos europeus e desqualificar a dieta dos nativos (vinheta que se mantém ao fundo, durante a fala da entrevistada). Um exemplo disso é a fala do escritor francês chamado Anselmo Brillat-Savarin. Ele defendia que a beterraba, de origem... europeia, né, era uma planta excepcional, dizia ele, de grande cultivo e mil utilidades, e ‘mostra’ que o Velho Mundo não precisa do novo. Ou seja, ele ‘tava’ com medo do açúcar de cana, que acabou chegando ‘pra’ ficar mesmo.

O livro Âncora Medicinal, de 1731, foi escrito pelo médico português Francisco Henriquez. E lá ele mostra uma... hierarquia, quer dizer, uma ordem, através dos cereais, sendo o trigo — de lá, né? — considerado cereal das elites e das mesas nobres, enquanto que o milho — daqui — representa os rústicos e os agricultores. Ou seja, fino e bom é comer trigo. O que dirá, então, a mandioca, a abóbora, o inhame, que são... a base... de carboidratos de muitos povos tradicionais. Comida de animal, né? Eu deixo ‘pro’ Carlos Alberto Dória falar da hierarquia das carnes e responder por que ‘que’ a gente deixou de comer proteína animal das carnes de caça, tartaruga, tatu, paca... (som de galinha) e mudamos ‘pra’ galinha e vaca. Muito além da facilidade do manejo, também tem a ver com a colonialidade do sabor. E essa é uma discussão superinteressante.

(vinheta que se mantém ao fundo, durante a fala da entrevistada)

Como já falei, um outro modo de fazer uma apologia à Europa era desqualificar a dieta daqui, dos colonizados, como fez o mesmo fofo lá, o Brillat-Savarin. Ele dizia que a dieta das colônias — aqui, né — rica em amido e carboidratos, milho, mandioca e também arroz ‘pros’ indianos, por exemplo, essa dieta... amolecia o músculo e também o espírito. Por causa disso — ele falava —, esses povos foram vulneráveis e foram facilmente dominados pelo europeu. Já ‘teve’ pesquisador inglês — é claro — que falou que alguns poucos ingleses conseguiram facilmente colonizar milhões de indianos justamente porque eles eram fracos por falta de proteína animal. Esses dois trocaram nome de comida por fuzil, porque quem dominou... sempre foi o fuzil, nunca a comida, e sempre que houve reação, teve mais sangue.

Mais tarde, os nutricionistas europeus, do início do século XX, continuaram com essa mania querida — fofa, né? —, de fazer uma diferença clara entre o modo de comer daqui e de lá, desqualificando grupos humanos. Tem uma citação aqui que é no mínimo escandalosa, né, ‘pra’ não falar um palavrão, do nutricionista Lewis Wolberg, que nasceu em 1905. E ele fala: ‘Na parte inferior da escala alimentar, estão os pigmeus africanos e homens da floresta brasileira. Os pigmeus vivem uma dieta simples, à base de frutas, nozes, insetos, larvas, mel e marisco. Comem muita comida crua, e têm sempre fome, como seu antecessor, o homem macaco lêmure, que se contenta em... coletar anima... alimentos em tempos de abundância, sem se preocupar em reunir provisões para as... as estações de escassez. Já o homem da floresta brasileira, diz ele, é uma criatura bárbara, de hábitos alimentares nojentos. Quando ele se sente dominado pela fome, enfia um pedaço de pau em um formigueiro ‘pra’ que as formigas subam até a sua boca’.”

(vinheta)

(Narradora) Deu para perceber, ao ouvir um trecho desse podcast, que os colonizadores lançavam mão de diversos artifícios para impor sua forma de alimentação nas colônias? Ainda que o colonialismo tenha chegado ao fim, as práticas coloniais sobre a alimentação dos brasileiros continuam em curso. Atualmente, a presença cada vez maior dos alimentos ultraprocessados em nossa dieta pode ser diretamente relacionada à influência de empresas transnacionais do ramo alimentício, que impulsionam, no Brasil, um padrão alimentar semelhante ao dos países desenvolvidos.

E você? Já tinha parado para pensar nas relações entre comida e colonialismo?

(Narradora) Créditos: o episódio completo “Comida e colonialidade”, do podcast Panela de Impressão, está disponível no Spotify. Outros áudios inseridos neste conteúdo são da Freesound.